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Coluna: Kult, um dos RPGs mais polêmicos dos anos 1990

Esoterismo, polêmicas e loucura permeiam este grande clássico dos anos 1990.

Fonte: Divulgação

Eu jogo RPG desde 1995 e nessa década as coisas eram diferentes. Dungeons and Dragons dava suas caras aqui no Brasil pela Editora Abril, enquanto nos EUA a TSR, editora que lançara o jogo, passara por problemas financeiros e tentava revitalizar seu jogo com a linha First Quest.

Nessa época alguns jogadores queriam jogos com temáticas mais adultas, voltadas a temas diferentes de fantasia e Vampire: The Masquerade tornou-se um enorme sucesso e popularizou o conceito de jogos de interpretação de terror, atraindo pessoas que apreciavam os temas mais sombrios e maduros oferecidos pelo jogo, com personagens vampiros inspirados na cultura gótica e na literatura de Anne Rice.

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Fora dos Estados Unidos, surgiram outros jogos de RPG com uma tônica adulta e, na fria Suécia, nascera Kult, no ano de 1991. Criado por Gunilla Jonsson e Michael Petersén, foi publicado pela Target Games e recebido com polêmicas e controvérsias envolvendo problemas relacionados a crimes e ao pânico provocado por uma imprensa irresponsável e imediatista.

Jogos de RPG de horror não são novidade. Call of Cthulhu explorava temas sombrios como loucura e o sobrenatural, inspirado pela literatura produzida pelo círculo do escritor americano Howard Philip Lovecraft. Ravenloft, que surgira numa aventura para Dungeons and Dragons, tinha um cenário sombrio inspirado na literatura ultrarromântica do século XIX, adaptada a um contexto de fantasia sombria. Contudo, Kult ia mais longe, abordando temas como religião, sexualidade e existencialismo.

Em Kult, a realidade é uma mentira e toda a humanidade está presa em uma ilusão criada pelo todo-poderoso Demiurgo, criador do universo, associado também ao deus único de religiões como cristianismo e judaísmo. Essa ilusão tem como propósito privar os seres humanos de sua origem e existência divinos, mantendo a humanidade em eterna servidão até o fim dos tempos.

Após seu desaparecimento, entidades chamadas Arcontes assumiram o controle e começaram a manipular almas humanas para mantê-las escravizadas na Ilusão. Eles são a personificação de princípios que moldam como a humanidade é confinada, que limitam seus objetivos e propósitos. Com exceção de um arconte, não há interesse no despertar coletivo da humanidade e na fragmentação e destruição da realidade como a conhecemos.

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Do outro lado há os Anjos da Morte, que desejam destruir a Ilusão e libertar a humanidade de suas garras. Representam o aspecto rebelde e niilista do jogo e desafiam as normas sociais, representando conceitos opostos aos dos arcontes. Assim como um pode representar um senso de comunidade, o outro representará o seu contrário, no caso a exclusão e o isolamento.

Os personagens são indivíduos comuns em processo de despertar, descobrindo a verdade sobre a Ilusão e sua própria existência. Isso acontece em meio á disputa entre as duas forças antagônicas e, com isso, levando a um caminho de iluminação ou de completa ruína e loucura. Eles devem lidar com cultos da morte, suicídio, magia sombria e a destruição da razão.

Todos estes conceitos são fortemente inspirados na cabala, no gnosticismo e nos movimentos esotéricos que surgiram na Suécia nesse período. Isso era o bastante para que o pânico moral se instaurasse no país contra os RPGs, com acusações de os jogos de interpretação promoverem ocultismo, violência e até suicídio entre os jogadores, da mesma forma que ocorrera nos EUA nos anos 1980 e aqui no Brasil no começo dos anos 2000. Deste modo, qualquer crime que ocorresse envolvendo jovens ou pessoas “estranhas” era automaticamente associado ao RPG. Isso vindo de um país que criou um estilo diferente de death metal e sua maior banda, Entombed, lançou um disco cujo título era inspirado por um livro de satanismo.

Em 1994, na cidade de Bjuv, dois adolescentes assassinaram seu amigo e a mídia afirmou que o jogo Kult os inspirou a cometer esse crime. No mesmo ano, Andreas Hammer desapareceu depois de supostamente jogar Kult uma semana antes. Em 1996, um garoto cometeu suicídio, e sua mãe culpou o jogo por influenciar sua decisão.

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Apesar da falta de evidências concretas ligando Kult a esses eventos trágicos, a controvérsia persistiu e um livro chamado De Övergivnas Armé (O Exército dos Abandonados, em tradução literal) foi escrito por Didi Örnstedt e Björn Sjöstedt para "expor" os supostos perigos dos jogos de RPG e sua influência sobre indivíduos vulneráveis. Tinha como objetivo “alertar” que os jovens poderiam se envolver em atividades que os levassem a um “movimento” político que levaria a um golpe de Estado.

Em virtude desses crimes, a Livets Ord (Palavra da Vida, em tradução literal), igreja evangélica fundada em Upsalla e que é constantemente criticada pela desumanização que fazem contra pessoas extremamente pobres e com deficiência física, decidiu que ia erradicar o RPG do país. Para eles, jogos como esse incentivavam as pessoas a seguirem por um caminho não-cristão, incluindo usar roupas escuras, gostar de metal e de reunir uns amigos para contar umas histórias com uns dados, certamente você fazia parte de um culto satânico e em algum momento cometeria suicídio.

Essas controvérsias tornaram o Kult alvo de censura no país, pois era visto como um jogo muito profundo e difícil que mergulha em temas sombrios e provocativos. Isso ajudou muito com a fama dele fora da Suécia, tornando-o objeto de desejo dos jogadores, com pessoas imaginando que esse era um jogo com temáticas muito pesadas

Ele teve traduções para inglês, alemão, francês e espanhol, mas sua disponibilidade e popularidade eram significativamente limitadas em comparação com outros jogos de interpretação da época. Isso se dava, sobretudo, por conta de jogos de horror, com exceção de Vampiro e CoC, serem jogos nichados e com um público muito menor.

Por isso ficou em hiato por muitos anos, com sua terceira edição lançada em 2004. Seu renascimento ocorreu em 2018 com o lançamento de Kult: Divinity Lost, com sistema Powered By the Apocalypse e algumas mecânicas interessantes para aprimorar a narrativa e a imersão. Para possibilitar essa nova edição, foi feita uma campanha pelo Kickstarter e o jogo foi modernizado.

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E como que joga Kult? O que você precisa saber caso queira experimentar? Um dos jogadores será o Mestre, que construirá as histórias, enquanto os outros serão personagens. Você deve rolar dois dados de dez lados e somar a um atributo e modificadores, precisando de um resultado 10 para um sucesso moderado ou maior que 15 para um sucesso completo.

Cada jogador tem uma série de ações chamadas de movimentos, que permitem a ele resolver problemas, suportar adversidades, obter informações e até mesmo lutar. Os sucessos são definidos em três escalas de resultado, que pode ser total (em resultados maiores de 15), parcial (em resultados entre 10 e 14) e falhas (com resultados abaixo de 10).

Em nenhum momento o Mestre faz rolagens de dados. Os resultados dependem daqueles conseguidos pelos jogadores e em caso de sucesso parcial ou falha, ele pode fazer seus próprios movimentos. Imagine ter um sucesso parcial ao tentar socar um oponente, isso pode resultar em acertar o soco e receber um contra-ataque.

Por essa razão o jogo não tem foco em combate e quase tudo se resolve de maneira interpretativa. Isso decorre sobretudo pela escala de poder entre os personagens e os males que eles precisam enfrentar serem desproporcionais, com Arcontes e Anjos de Morte tendo poder imenso e seus servos serem muito poderosos para confrontos diretos.

Esse jogo já tem uma versão em português lançada pela Buró e pode ser comprada em lojas online como a Amazon e em lojas especializadas.


Sobre o Autor:
Fabio Melo

Formado em Letras, especialista em Língua Portuguesa e Literatura, além de alguns cursos aqui e ali sobre língua inglesa. Possuo um site / podcast para falar de música alternativa, faço umas músicas experimentais ruins e sou aficionado por RPG e jogos analógicos (vulgo jogos de tabuleiro).

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